Relançamento de Mulheres do Vale: substantivo feminino. Um presente de Lori Figueiró

Liliana Porto¹

Lori Figueiró é, na minha opinião, o maior fotógrafo do Vale do Jequitinhonha mineiro na atualidade e, talvez, na história. Diamantinense e com a família paterna de Francisco Badaró, ele traz em sua mirada a identidade com as pessoas cujas imagens registra e com o espaço que habitam. Propõe-se, assim, não a olhar o Vale a partir da exterioridade, da exotização ou de sua suposta pobreza, mas sim do diálogo com aquelas e aqueles que lá constroem suas vidas, seu mundo, seus conhecimentos. Em suas fotos, é possível perceber a admiração e respeito que nutre por esse mundo, esses conhecimentos, essas pessoas.

A postura de Lori se exprime em detalhes, nas imagens e além delas. Em seus livros, os rostos não são anônimos, todas/os têm nome e sobrenome, suas histórias subjazem às fotos que as/os eternizam. Em vários casos, os registros em distintas datas testemunham relações de intimidade, amizades que transcendem o interesse imediato e trazem consigo memórias, afetos. Assim como a permissão a espaços e contextos reservados, inacessíveis para os estranhos. Não somente as cozinhas, abertas para visitas menos solenes, mas os quartos, com suas camas e altares dificilmente vistos por quem não é “de casa”.

Helena Siqueira Torres, São Gonçalo do Rio das Pedras, Serro, março de 2021

Helena Siqueira Torres, São Gonçalo do Rio das Pedras, Serro, março de 2021

O potencial das fotos de Lori é múltiplo. Para as pessoas fotografadas e posteriormente presenteadas com suas imagens e os livros em que aparecem, o reconhecimento (muitas vezes negado pela perspectiva hegemônica) de sua beleza, da importância de sua existência. Para quem nunca foi ao Vale, a chance de conhecer seu povo, seu espaço, sua religiosidade, sua estética e a visão de mundo a eles vinculada. E para quem, como eu, ama o Vale mas está longe, o transportar-se para lá, o despertar de lembranças queridas e o aconchego que isso proporciona.

Razões para falar no relançamento de Mulheres do Vale: substantivo feminino como um presente. Este é o livro mais volumoso da intensa produção de Lori, concentrada na última década. Nele, a afinidade do fotógrafo com o universo feminino, com aquelas que ele define como a “força motriz” do Vale, se manifesta em sua plenitude. Através das mulheres, Lori reúne e expressa a complexidade da vida, com suas alegrias, agruras, força, fé, conhecimentos, cuidado. Ao semblante intenso de várias delas se conjugam as imagens de espaços cuidadosamente produzidos e de habilidades pacientemente adquiridas.

Maria Domingas Gomes Soares, Padre Paraíso, junho de 2021

Maria Domingas Gomes Soares, Padre Paraíso, junho de 2021

Nesta segunda edição, a qualidade gráfica superior se complementa com a mudança de pequenos detalhes relevantes. A capa, “sangrada”, revela com mais intensidade a força do Congado de Chapada do Norte. Uma imagem que traz a potência dessas mulheres, de todas as idades, reunidas no louvor a Nossa Senhora do Rosário. Confesso que apenas após algum tempo admirando-a pude ver a bebê no colo de Geni, a Rainha do Congado, indicando uma tradição que se constitui desde o nascimento e se transmite ao longo da vida. A foto de D. Benvinda, a única alterada (além da do próprio autor, ao final), traz ainda mais expressão a essa mulher três vezes viúva e que, na parede de sua “varanda” (como chamam a copa na região), tem as imagens dos maridos, um deles com a primeira esposa. A impressão primorosa confere ainda mais vida e força a essas mulheres que, em suas faces, afazeres e espaços, anunciam o poder do Vale do Jequitinhonha.

Apesar de não ter formação acadêmica, a sensibilidade de Lori nos permite adentrar o Vale e seus encantos, produzindo uma visão etnográfica sobre o cotidiano que retrata, em que o diálogo suplanta a observação, a intimidade se estabelece e um mundo se abre para além de nossos olhos. Obrigada, Lori, por permitir com essa segunda edição que se amplie a possibilidade de desfrutar desse livro agora ainda mais lindo.


¹ Professora associada de antropologia da UFPR, doutora em antropologia pela UnB, com pós-doutorados no Museu Nacional/UFRJ e no PPGHIS/UFOP. Faz pesquisas no Vale do Jequitinhonha desde a década de 1990.