Brava gente brasileira

Livro do fotógrafo Lori Figueiró retrata o povo do Vale do Jequitinhonha com seus saberes e ofícios. Autor denuncia a iminente destruição do rico legado da cultura popular

As imagens foram cuidadosamente registradas dentro de casa. As únicas paisagens estão na segunda e terceira capas do livro – as montanhas de Minas, com destaque para o Pico do Itambé e a florada de cebolinhas que cobre de beleza a terra árida de Itinga, no Vale do Jequitinhonha. Todas as fotos são de gente. Gente do Vale, conhecedores tradicionais de saberes que estão se perdendo com o passar dos anos. São parteiras, “rapadureiros”, raizeiros, benzedeiros, fazedores de peneiras de taquara e de selas, tropeiros. Ofícios que ao longo dos séculos foram passados de geração em geração, sem relação com o ensino formal, cuja prática pode cair no esquecimento.

Anna Catharina de Souza, Francisco Badaró, outubro de 2013

“Nessa região, grande parte dos jovens de hoje tem vergonha de seus parentes, não quer dar continuidade a esses ofícios”, observa José Lourival Figueiró, o Lori, fotógrafo autodidata e vídeodocumentarista. Ele é o autor do livro Reflexos ao calor do Vale, produção independente que traz em suas 128 páginas as imagens dessa gente.

“A motivação maior do livro foi o meu amor por essa região, por esse povo de Minas. Queria homenagear essas pessoas, que raramente são vistas pela sociedade. Depois de largar os estudos, aos 14 anos, para trabalhar no comércio, área que atuei a vida inteira, na fase adulta fui em busca de outra atividade. Retomei a fotografia. A ideia era registrar pessoas ligadas ao fim de uma era”, conta Lori. A maioria das pessoas fotografadas tem mais de 70 anos – muitas são centenárias. “Doze morreram durante a produção do livro”, revela.

Nascido em Diamantina, Lori conhece bem as regiões do Médio e Alto Jequitinhonha e o Norte de Minas. Ele fundou o Centro de Cultura Memorial do Vale, organização sem fins lucrativos que busca registrar, por meio de imagens, a vida no Vale do Jequitinhonha. A partir da sua experiência como fotógrafo durante os fóruns da mulher do Jequitinhonha, desenvolvidos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para conscientizar a população sobre violência doméstica, direitos humanos e trabalho escravo, e, mais recentemente, em eventos da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) com a Associação Jenipapense de Assistência à Infância (Ajenai), Figueiró bolou o projeto voltado para moradores de Araçuaí, Berilo, Chapada do Norte, Coronel Murta, Jenipapo de Minas e Minas Novas.

“Fui Chegando na casa dessas pessoas indicado por amigos e parentes que vivem na região e por meu contato com as Casinhas de Cultura ( projeto desenvolvido em boa parte dessas cidades com apoio da ONG de apadrinhamento Fundo para a Criança), onde há um trabalho de resgate da cultura e das brincadeiras antigas do Jequitinhonha”, acrescenta.

Na trajetória de registrar ofícios, Lori se deparou com histórias emocionantes que só ele sabe contar, mas, infelizmente, não estão descritas no livro. Uma delas é de Dona Ilídia Batista Lopes, de 100 anos, que vive numa casa simples em São Gonçalo do Rio das Pedras, no Alto Jequitinhonha. Parteira a vida toda, ela capina até hoje no seu pedacinho de terra, produz farinha e rapadura. Dona Licota, de Jenipapo de Minas, no Médio Jequitinhonha, é benzedeira e joga versos enquanto dança o batuque. Jogar versos, dançar batuque ou nove, vilão e candombes são representações culturais que estão se perdendo. “Também faz parte do meu trabalho tentar registrar esses momentos, conhecer melhor essas manifestações artísticas”, comenta Lori.

Fernando Dias Silva, Adilson Dias Silva, Jorge de Souza Silva, Valdivino Sergio Dias Silva, Vanessa Dias Silva, Rita de Cássia Dias Silva, Maria Julia Dias e Marcos Vinicius Dias Silva, Tamanduá, Jenipapo de Minas, janeiro de 2012

Sacralização

Outro viés importante que ele buscou registrar é a iconografia doméstica da religião: um santinho colado na parede, um pequeno altar, imagens em cima da mesa, presépios. “É a sacralização do cotidiano, muito forte no Vale. Cheguei à casa de duas senhoras e ambas rezavam missa com a televisão. Uma com o terço na mão, a outra com vela acesa no chão. Nas mãos, a imagem de Nossa Senhora. O quadro mais recorrente nas paredes é o de Santa Luzia. O sagrado é tão forte na vida deles que se planta, colhe ou castra o animal conforme a lua. São sinais de uma vida ainda bem primitiva”, explica.

O fotógrafo destaca a força das mulheres do Vale. “Elas fazem parto, parem, criam e cuidam dos filhos e da casa. Muitas lidam na roça, presidem associações locais. Estão presentes em tudo”, diz o autor. Dona Geralda tem oito filhos, fez mais de 700 partos e está à frente do Grupo de Consciência Negra, em Jenipapo de Minas, que reúne seus filhos, netos e bisnetos. Dona Aruína é parteira e teve 10 filhos, todos sozinha. Ela mesma cortou o cordão umbilical. Um deles nasceu  enquanto ela e o marido colhiam pequi, a cinco quilômetros de casa. O bebê foi enrolado no saco que levaria os frutos – Aruína voltou para casa com o filhote e o companheiro, a pé. Sanete de Souza, 40 anos, tem 15 filhos. Lidera o Quilombo Mocó dos Pretos, em Berilo, e está organizando quilombos no Médio Jequitinhonha.

“O que mais me impressionou foi a dignidade desse povo valoroso e verdadeiro, que tem uma unicidade na construção dos laços afetivos e da família. Foi incrível”, sintetiza Lori. Agora, o fotógrafo se dedica a levar um exemplar à casa de cada uma das pessoas retratadas, registrando em seu blog o momento de cada um se ver no livro. Emocionante.

Cristiana Andrade

Jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 27 de junho de 2015