Vale Sagrado

Moradores de cidades do Jequitinhonha ganham registro permeado pelo afeto

Não foram poucos os conhecimentos adquiridos que reverberaram (e ainda reverberam) na alma do fotógrafo e pesquisador autodidata Lori Figueiró, durante seu périplo pelo Vale do Jequitinhonha – mais especificamente, pelo chamado Médio Vale. O conhecimento em questão foi repassado pela escultora Josefa Alves dos Reis, a Dona Zefa. “Todos os dias me lembro de um versinho dela, dentro da oração da Mãe Terra, que fala da existência do fogo dentro do coração, que Deus teria colocado”, diz ele, que está lançando agora um belo registro de sua empreitada: o livro “Reflexos ao calor do Vale”.

Antes de seguir em frente, cumpre esclarecer que, ao falar de Deus, Lori vai logo emendando: “Estou me referindo a uma força superior, não a um senhor de barbas brancas sentado num trono. É uma força que está acima de nós e que remete à responsabilidade que temos com o outro”. Não por outro motivo, lá está, no inicinho da obra, o verso que tanto impactou Figueiró. “Deus/quando preparou o homem/ele pôs o fogo no coração do homem/o fogo tá dentro de nós/o amor é o fogo/que nunca se apaga”.

A julgar pelo ânimo que permeia a fala de Figueiró ao destrinchar seu projeto, é indubitável que o fogo que o alimenta caminha em direção diametralmente oposta à extinção. Iniciada em São Gonçalo do Rio das Pedras há sete anos, a missão de Lori teve como pilar a visita a moradores da região, mais tarde ampliada geograficamente. Mas não uma visita protocolar. Lori faz questão de entrar nas casas, partilhar o cotidiano de famílias que, muitas vezes, vivem sem energia elétrica ou contato com as novidades tecnológicas hoje tão banais nos grandes centros. “Uma coisa é estar passando pela estrada e fazer um registro de uma cena, outra, fazer o registro dentro da casa. Falo que o meu olhar está para o interior, e, aí, a pessoa acaba se abrindo para você”, advoga.

No meio do caminho, pessoas do naipe de Dona Helena, 79 anos, que já foi escritora de cartas e hoje mantém, no quarto que foi da mãe, um rico presépio montado o ano inteiro (salvo outubro, quando é feita a limpeza das peças, uma a uma).

Geralda Leite Sena, Tocoiós, Francisco Badaró, outubro de 2014

Portas abertas para registrar, em diversas plataformas, a inequívoca riqueza da região

Inicialmente, o objetivo do diamantinense Lori era trabalhar com idosos. Fazia, pois, visitas, reuniões, com a intenção de promover, neles, a autoestima. “Ouvir o que tinham a passar para agente, e que é sempre uma coisa inesperada. Um dia ouvia versinhos de um, em outro, modinhas. O assunto também ia muito para orações, ‘benzeções’…”

Fascinado, Lori ficou cerca de dois anos fazendo registros, gravando áudio, alguma coisa de vídeo. “Tudo muito caseiro, nem um bom gravador ou câmara de vídeo a gente tinha”, repassa ele, que, animado com o que ia vendo, fundou o Centro de Cultura Memorial do Vale, com a intenção de sistematizar tais registros. Mas veio o ano de 2010 e Lori sentiu-se um pouco “preso” por estar em contato apenas com moradores da região.

Foi quando afivelou a mala e rumou para o Médio Vale, nas proximidades de Araçuaí. “Foi meio que um desejo. Meu pai era de Francisco Badaró e passei parte da minha infância lá, assim como em Minas Novas. Foi onde, adolescente (hoje contabiliza 53 anos), ia descobrindo a vida, nos festivais de música, feiras, mercados”. Nas chamadas casinhas de cultura regionais, algumas ligadas ao ChildFound, que apadrinha crianças carentes, ele travou contato com as brincantes, “que são mulheres, algumas de meia idade, que dão assistência às crianças, e que abriram as portas, para que eu pudesse entrar nas casas”.

Sebastião Ferreira dos Santos, Fazenda do Riacho, Jenipapo de Minas, julho de 2014

‘São pessoas valorosas, sábias, sensíveis e trabalhadoras’

Lori é enfático ao discernir: “Minha relação com as pessoas registradas no livro passa pelo afeto”. Tanto que a conversa com a reportagem aconteceu tão logo ele voltou para casa após mais uma etapa de sua atual missão: levar,a cada um dos retratados, um exemplar da obra. “Eles ficam alucinados com o livro”, diz, sem esconder que, nesta volta, tem tido surpresas desagradáveis. Posto que alguns dos fotografados idosos à época do clique, Lori soube do falecimento de alguns. “Machuca muito”, confessa.

Mas o gás para seguir adiante vem de manifestações espontâneas de gente como Dona Rosa, que, mesmo tendo sofrido um derrame, fez questão de, aos prantos, dar um abraço ao rapaz que a eternizou em foto. “São pessoas valorosa, sensíveis, gratas, trabalhadoras, sábias, mas que infelizmente, nos dias atuais, estão à margem da sociedade”, lamenta.

Patrícia Cassese, Jornal Hoje em dia, Caderno Almanaque, 23 de março de 2015