Como eram próximos! Como eram cúmplices!
Receio que falar de Zefa como artista, artesã ou contadora de causos possa ser algo redundante dada a sua inestimável e inegável importância para a Arte e para a Cultura no Vale do Jequitinhonha. Atrevo-me, então, a falar um pouquinho da Mulher Josefa Alves dos Reis que, por meio de Lori Figueiró, pude conhecer. Por muitas vezes acompanhei as visitas de Lori à Zefa e posso garantir: não eram visitas para composição de um trabalho artístico ou um registro documental. A intimidade respeitosa e recíproca estabelecida ali, desde o princípio, era de um Amor fraterno, forte e intenso característico das almas evoluídas. Sim, foi um encontro de almas. Repito: um encontro de almas. E almas sensíveis à condição humana, como percebemos no trabalho de ambos. Não eram só dois artistas que eu via. Eram duas almas amigas que, pelas falas precisas e acertadas, me embrenhavam a pensar no Mistério Transcendental que se revelava ali em cada detalhe - falas, movimentos, olhares, contemplação, cliques, respiração. Também percebia em Zefa uma fé consciente! Como consciente era a sua certeza de ser quem ela era e de seu papel como Mulher e como Artista. Lori me alertava: “Olha a dignidade dessa Mulher, Diêgo!”. Eu me encantava, me emocionava e no pensamento: “Quanta sabedoria! Quanta beleza!” Típico das relações eletivas, portanto, afetivas, Lori conquistou de imediato uma liberdade que há muito tinha sido suspensa para alheios e terceiros. Ela já não concedia entrevistas, raras as permissões para fotos e vídeos, mas sempre de prontidão para uma boa prosa. E das prosas, seguidas por inúmeras baforadas no cigarro de palha, as narrativas de uma vida inteira de lutas, desafios e provações, mas também de muitas conquistas e outras tantas alegrias. Estar viva, “catando os cavacos“, como ela dizia, já era razão de agradecimentos e de felicidade. Os diversos e profícuos diálogos entre Zefa e Lori pareciam não ter fim e na ausência das pausas, que também seriam poéticas, porque tudo ali era poesia: revelações dos tempos de menina no sertão paraibano, os tempos de mascate, os cuidados com a cunhada, a devoção à Mãe Terra e o desejo de ajudar ainda mais as pessoas. Zefa, em tão pouco tempo, tinha em Lori o filho que nunca gerou. E como mãe zelosa e filho atencioso, se permitiam cumplicidades e franquezas que me faziam ter a certeza do divino e do sagrado que pude observar naqueles encontros. Como eram próximos! Como eram cúmplices! Cada visita, cada encontro, cada conversa eram para mim a expressão ímpar do Amor, que também está impresso e expresso neste livro em sua homenagem.
Diêgo Alves
Sacralização do cotidiano
Depois de um longo tempo
com a câmara apontada
e inúmeros disparos
em sua direção,
Josefa Alves dos Reis - Dona Zefa
não se contendo
sentenciou:
“Todo artista, Lori, num é muito certo não.
Parece qui uma força divina
toma conta da pessoa
e trabalha com a pessoa.
Eu tiro por mim
eu num sou certa
e tô vendo aqui
qui ocê também num é.
É a força da loucura que faz tudo
todo artista tem o dom da natureza
essa loucura qui é semeada
pelas mãos di Deus.
É por isso qu'eu agradeço todos os dias a Deus
as três pessoas da Santíssima Trindade
e ao solo divino, qui é o santo olho verdadeiro.
E eu acho qui ocê divia di fazer o mesmo,
Deus tem aí as mãos te abençoando.”
Aparvalhado contemplei
no visor da câmara
uma de suas imagens
acreditando
que aquele gesto
poderia, sim
ser uma maneira
de retribuir as suas palavras.
A janela entreaberta
manchava de luz o ambiente
adornado de fotografias
gravuras e penduricalhos
- Manifestações
do seu universo
interior -
Baforando fumaça como se enxaguasse
os olhos amarelados de semi-sonho
Dona Zefa sorriu
e do fundo de seus olhos
uma luzinha, lá de muito dentro,
aparecia.
O tempo
o suor impregnado em cada ser
disposto na sua pele
retorcida
nas mãos e pés
crestados
como gretas e arroios secos
incólume.
Somos infortunados por estarmos aqui
ou devemos agradecer?
A existência é mesmo algo finito e sem sentido?
Me atrevi a perguntar:
- O tempo é a mais pesada carga que o homem
consegue suportar?
- Num foi ocê mesmo, Lori, qui fez mangação
qu'ele parece uma criança destrambelhada?
- Foi?!
- Qui ainda considerou qui podemo olhar
com olhos distraído o nascimento das coisa?
Aqueles fiapos di lembrança
como o rudopiar dos redimunho
nas curva das estrada,
o cantar dos acauã em fevereiro...
- O céu que se abre azul
o perfume do vento nas tardes de outono
os caquis amadurecendo...
- As nuvem estrondando raios atrás das serra,
o tacho fumegando garapa
as espiga di milho imbonecando...
- O fogão de lenha recendendo a café,
a mãe da lua, a madrugada suspensa,
o riacho manhãzinha...
Guardou silêncio alguns instantes
e como se desfizesse de um sorvo de vida:
- O colorido das veste do bando di Lampião
naquela manhã di feira
quand'eu inda tinha onze ano...
Dias qui passou pra num voltar nunca mais!
Enquanto um dos gatos
esparrachado em seu colo
lambia o encardido
de nicotina e fumaça
dos seus dedos,
sobre a mesa,
um outro,
engaiolado
há dias,
me olhava com ares
de soberba indiferença.
- O tempo, Lori, é distinoso...
Avôa!
E é também como um cavalo disimbestado.
Qui Deus mi perdoe
mas é qui nem notícia ruim
num tem porteira qui aquartela.
- A vida pode ser longa
e muitas vezes se faz noite.
Por que esse nosso recordar
intenso
de tantas coisas?
- Vê as coisa trazida pela lembrança
é muito mais aprazível
até mesmo os azedume da solidão.
Pressenti
que o calor
o ar seco e ranhoso
potencializa o silêncio e o amargor
que existe em todas as solidões.
Até mesmo a minha
a dela
e de todas aquelas pessoas
que com assombro e respeito
revestiam com seus retratos
as paredes daquela casa.
O temor a Deus
e a Santa Mãe Terra,
qui é a mesa da comunhão
e a verdadeira mãe
di todo ser vivente,
é o qui nos salva.
Deus qué qui sejamos fiéis
e obedientes a ele.
E satisfeito
ele está sempre pronto
pra satisfazer os nossos pedido.
Assim também é a nossa mãe
a mãe terra.
É o caminho qui devemos di seguir, Lori.
Como se cavucasse
ajoelhando-se
no solo cimentado
Dona Zefa fez o sinal-da-cruz
com os braços estendidos
rezando a oração da Mãe Terra:
Aqui me ajoelho, Senhor
nesta mesa divinal.
Minha alma se alegra
di vê tão rico manjar
o manjar tão incelente
dado pelo Senhor.
Qui os pecados qui eu tinha
e não disse ao confessor,
Eu agora vos digo, Senhor
sem saber quantos eles são.
Perdoai os meus pecados
na santa Mesa da Comunhão.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
minha Santa Mãe Terra.
foi repetido três vezes
com as mãos e a boca
beijando o solo.
Compreendi a sua dificuldade
para se levantar
e a recusa
em aceitar a minha ajuda
.
93 anos.
Uma vida/obra
rigorosamente
talhada com as mãos.
Contando, Lori, ninguém é di acreditar.
Com o passar dos ano tudo vai misturando
virando um carreiro só
e a gente acaba num se incontrando,
como deve di ser,
naquilo qui já viveu.
Ou se acaso incontra
é num antes ou dispois
arrevirado
como sonho de galopá nuvem.
Um disatino.
Por isso, o mais importante
é trabalhar o nome
qui a gente há di deixar.
Tou me indo
sei qui não vou demorar
e sei também qui o meu nome eu vou deixar.
Na claridade de um entardecer
quase escuro
os seus olhos
como aves de arribação
reluziam.
Lori Figueiró