No espelho das palavras e imagens: reflexos e refrações
“Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem
minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água –
carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas
quem de repente aprende.”
(João Guimarães Rosa. 1967, p.235.)
“Objetividade é um termo relativo, porque aquilo que é
objetivamente percebido é, por definição, até certo ponto,
subjetivamente concebido.”
(D.W. Winnicott. 1975, p.96.)
José Lourival Figueiró nos apresenta mais um espelho. Isto é, apresenta um novo livro que reflete o anterior que, por sinal, se chama Reflexos ao Calor do Vale. Neste segundo livro, O espelho das lembranças: memórias do Vale, o que se tem, mais imediatamente, é a imagem de alguns dos fotografados do primeiro livro, contemplando, refratando com imagens e palavras, as imagens ou reflexos, extraídos daquele primeiro livro. Com isso, em síntese, esse novo livro é o reflexo de um outro reflexo anterior. Tal operação, ou estratégia de relação entre livros, ou espelhos, nos leva a pensar sobre o que seria um espelho. O espelho apenas reflete? O espelho vai além do que reflete?
Deixemos Clarice Lispector nos dizer, usando um de seus espelhos, ou livro, chamado Para não esquecer: em tal livro, em texto de crônica que se chama justamente, Os espelhos, o que ela pensa sobre tal relação: é uma relação de reflexos? De refrações?
O que é um espelho? Não existe a palavra espelho – só espelhos, pois um
único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver
uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante
e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu,
num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente ad
infinitum, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la
escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. – O que é um espelho?
Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no
vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e
silêncios. – Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir
para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que
existe. (LISPECTOR, 1992, p. 7.)
Se um espelho pode refletir um outro - um livro pode refletir outro livro - nesse refletir não se produz apenas a objetivação das figuras, ou imagens e palavras, em reflexo, mas um “campo de silêncios e silêncios” que institui um certo vazio onde aquele que apreende os reflexos vê, “sempre em frente sem parar”, os sentidos que vão constituindo o tecido das refrações que o vidente vai construindo. Nesses termos, os reflexos dos livros de Lori produzem mais do que apenas reflexos, mas um campo aberto de imagens e palavras que dizem sentidos que são refrações: as palavras e imagens dos espelhos, no justo instante em que dizem o que dizem seus locutores (dizendo o que se diz com a objetividade das significações que se constituem como significado ), fazem alguma coisa a mais: tornam possível o fazer das interpretações - ou das refrações - dos próprios locutores, ou seja, daquele que as fotografa e daqueles locutores e interlocutores que se põem a ler, reler, os reflexos dos livros. Isso porque todo dizer de um locutor, com imagens ou com palavras, não apenas diz com objetividade o significado do que diz: nesse dizer o que se diz, ocorre, também, uma experiência subjetiva de significação que constitui uma realização de sentido. Aqui, o locutor dramatiza interpretações: executa refrações. Vale lembrar que um sacerdote, na tradição cristã do catolicismo, durante a prática do sacramento do batismo, no justo instante em que diz “Eu te batizo”, nesse dizer e com esse dizer está executando, simultaneamente, a ação de batizar. Por outro lado, vale ainda afirmar o seguinte:
Todo ato de fala que pretenda ser uma articulação de um dizer a um fazer,
associado ou não às dimensões perlocutórias (efeitos) que daí derivam
, constitui um ato ilocutório: constitui uma ação que se efetiva na linguagem,
através da linguagem, ou com o uso constituinte de sua materialidade.
(CAMPOS, 2001, p.59.)
Com isso, é possível dizer que todo ato de linguagem é constituído, simultaneamente de um dizer e um fazer; todo reflexo diz e faz reflexos com palavras e imagens; todo reflexo diz e faz refrações com palavras e imagens. O ato de dizer, com imagens, com palavras, com imagens e palavras é, enfim, um ato de fazer, ou de constituir significações que se realizam como significados (reflexos) e de constituir significações que se realizam como direção particular, subjetiva, a tais significados, formando aquilo que se manifesta como sentido (refrações).
É assim que, ao escrever Fotografia II, na epígrafe que abre o segundo livro, apoderando-se do refletir e do refratar da linguagem, Lori é capaz de dizer o que D. Jesuína – Jesuína Orneles de Cristo – diz, mas não fica apenas nos reflexos do que ela diz. Vai além: viaja pelo silêncio das imagens e palavras e, assim, vai interpretando, refratando o que a heroína diz e faz - o que ela refrata - com o poder especular de suas imagens e palavras. É assim que, na refração das palavras de D. Jesuína, Lori é capaz de ver em ação o poder das palavras que vão dizendo e fazendo reflexos e refrações: interpretações. Enfim, com o espelho das palavras e imagens que refletem e refratam, o fotógrafo, com a sua Fotografia II, vai constituindo a singularidade da heroína, exatamente naquilo que ela produz como refração ao longo dos reflexos do espelho de suas palavras:
– Num é de ver, Lori, o finado Oscar, Deus levou...
Ocê sabe, eu sei, e eu sei qu'ele num tá aqui no retrato mais eu,
mas ocê pode acreditar, eu vejo ele perfeitim,
esfumaçado, entre nuvens, perfeitim de tudo...!!!
É como as minhas vista com a idade me deixa enxergar.
Cada vez mais eu enxergo diferenciado, num é mais
como nos tempo de atrás...
Ele era um homem bom, tinha lá os seus defeitos,
todos nós temos, mas era um homem bom,
ele a vida toda foi o meu marido.
Um tiquim só de dias pra sessenta anos de casado,
ocê há de ver comigo, é uma vida, ocê num vê?!”
Jesuína Orneles de Cristo
E me valendo aqui, do poder de usar do espelho das palavras e das imagens, vou me lembrando, por entre os reflexos de D. Jesuína, de certa refração que ela produz ao reconhecer a variedade do que constitui o mundo naquilo que esse mundo tem de variedade de cores:
– Arreparando bem, Lori, o mundo tem cores por dimais,
nem parece de verdade.”
Reconheço, na multiplicidade do que é possível ver, a variedade das diversas cores entrevistas, a ponto de se poder até duvidar de tal variedade ou multiplicidade. É aí que consigo atravessar o reflexo do espelho de tais palavras e enxergar pelos seus silêncios – onde moram as refrações – uma refração, ou interpretação, produzida por Mikhail Bakhtin. Ao fazer uma reflexão sobre o poder da palavra, esse pensador, estudioso de filosofia da linguagem, refletindo sobre a multiplicidade e a variedade dos diversos usos da palavra, na constituição do gênero romance, compara a força da palavra com a força de um raio. Assim, a palavra-raio ao atravessar o espelho das águas, refrata-se nas múltiplas cores, ou sentidos, que se registram na figura do arco-íris. E assim, com tal refração, ou interpretação, a palavra registra o que é concretamente singular no ser humano: a singularidade da refração de sua experiência.(BAKHTIN, 1990,p.87 ) Se assim é, temos, aqui, nessas palavras a singularidade com a refração desse dizer de Bakhtin; temos a refração do dizer de D. Jesuína, a refração do dizer de Lori ao reconhecer, por exemplo, nos olhos de D. Jesuína um “céu aquarelável”, e, por fim, o dizer do próprio emprego dessa concepção de espelho, na produção desse comentário, em que palavras e imagens, aparecem como reflexos e refrações que se multiplicam em abertura de silêncio para o infinito. É clara, ainda, a singularidade das cores, nos termos da refração produzida por Clarice Lispector ao dizer que o que fazemos é recapturar, em preto e branco, o que é vívido, naquilo que esse vívido tem de “luminosidade arco-irisada e trêmula” (LISPECTOR, 1992, p.8.).
É bem possível que possamos ver a dramaticidade das palavras que dizem o que reflete e refrata Eva: Eva Gomes Francisca Lopes. No dizer o que dizem, as suas palavras e a sua imagem executam o que diz, objetivamente, em reflexo e, além disso, executam uma ação dramática de quem elabora, em refração, uma perda, reconstruindo certa presença, ao ver as imagens da foto de sua mãe, Alvina Gomes da Silva, que traz, no acolhimento afetuoso de seu colo, o netinho, Davi Francisco da Silva. E assim, vendo os reflexos das imagens, Eva vai além de tais reflexos e, no silêncio do que se vê, as palavras e a imagem passam a executar um fazer: a singularidade de sua refração ou interpretação, quando a perda que traz a ausência acaba por se constituir em presença cheia de vida. E, assim, não consigo deixar de refratar essa experiência de Eva com a refração que o poeta Carlos Drummond de Andrade executa no poema Ausência: cada um, a seu modo, executa a singularidade da refração da experiência de elaboração da presença de uma certa ausência no sentido que produzem. Ouçamos o texto de Eva e em seguida o poema Ausência, de Carlos Drummond.
Minha mãe!!! Que benção!!!
Ela... direitinho como se ela tivesse aqui...!!!
O cheiro dela...!!! O lencinho que ela tanto gostava...!!!
Ela sempre tão limpinha...!!!
Ninando Davi, ele bebezinho...!!! Que aligriage!!!
As suas mãos, as mãos de mãe...!!! Bondade!!!
Fico alembrando de todas aquelas crianças que ela trouxe
pra vida, uma criançada que num tinha fim,
era menino demais, Lori,
que ocê nem consegue de imaginar!!!
Os menino de antigamente, ocê sabe,
num tinha hora de nascer, era de dia,
era de noite, madrugadas...!!!
Ela já te contou, num contou?! Eu alembro!!!
E ela ali, no batente do dia,
zelando pelos menino, zelando pelas mãe,
sem nunca reclamar, sempre agradecida,
alegre de puder servir, de ajudar!!!
A minha mãe...!!! ela tão pequininhinha.!!!..
parecia um passarim...!!!
Que aligrançola, meu Deus!!!
Ocê sabe que'u fico aqui alembrando d'ocê
e qu'eu num esqueço nunca de pedir a Deus
pra te dar de dobro tudo o que ocê tem feito pra nós.
Tudinho!!! Bondade!!!
Eva Gomes Francisca Lopes
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
Já, aqui, numa outra cena o que se tem é o “Seu” João Lino, João Rosa da Silva, num flagrante ligeiro e revelador de sua singularidade.
Eis o que diz Lori: Manhã de domingo, barra do Pico do Itambé, Capivari.“Seu” João Lino, João Rosa da Silva, depois de se ver coando o café no monitor da minha câmara, não se fazendo de rogado, exclama:
– Diacho sô, quem tem tempo faz feitiço!!!
O senhor cum essa sua máquina, ave maria!!!
Isso é que é coisa de feiticero!!!
Olh'eu aqui, inteirim, inteirim...!!!
[...]
Num é qu'eu tô veno tudo como divera é!!!
Moço, qui disparramo, qui trem mais horroso de bom!!!
João Rosa da Silva
Diante do reflexo de sua imagem e do ambiente fotografado por Lori, nas imagens do Reflexos ao calor do Vale, “Seu” João Lino acaba por se surpreender com o caráter encantatório das imagens que, dramaticamente, fazem o real ser mais real do que o próprio real, o que dá a esse real o caráter de objeto maravilhoso, refratado pela força surpreendente do fotógrafo e da máquina fotográfica. Isso faz da refração de “Seu” João Lino o registro de uma experiência singular que vê, no caráter surpreendente da prática da fotografia e do fotógrafo, a ponta de algo que está além das coisas imediatas: de algo que se aninha nas artes transcendentes da feitiçaria. Aliás, o cientista, locutor e narrador do conto, O espelho, de João Guimarães Rosa, revela, de modo refratado, esse caráter surpreendente do poder revelador do espelho com seus reflexos e refrações quando nos diz: “Reporto-me ao transcendente. Tudo aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos.” (ROSA, 1994, p.437.)
Vale retomar aqui o encontro de Lori com Lucília Lopes Santos Ribeiro. Eis o seu texto.
Meninão! É pra mim?! O livro todo?!
E essa dona, eu conheço?! Olha os brincos...!!!
É de ouro?! Bem velhinha...!!!
Olha eu aqui...!!! Aqui tudo, as pratileiras,
as vasilhas, o balcão, até a balança, as rapaduras,
as sombrinhas, os molhos...!!! Tudo limpinho...!!! Brilhando...!!!
Ficou até bonito...!!! Tudo fica limpinho na fotografia,
as cores, colorido...!!! Olha, ali...!!! As verduras novinhas,
verdinhas...!!! Os pratos...!!! Eu aqui, de avental...!!!
Ocê tem certeza? É um presente mermo?
Ocê sabe, ôce faz um bem pra nós, minha mãe...
Ontem ela tava lembrando d'ocê, ela pergunta, quer saber,
ocê sabe né, os velhos são assim... ainda ontem...
Eu falando dela, olh'ela aqui na frente da televisão dela,
rezando a missa dela... É assim...
E olha, é Anália, o fogão acesso, ela já bem velha também,
né, ocê conheceu ela bem? Conheceu né?!
Ê mulher que trabalhou!!! E como...!!! Que Deus a tenha...!!!
A vida... A vida... Né meninão!!!
E essa velhinha aqui, cheirando o nenenzinho?
Lá de Minas Novas? Parteira? A minha mãe também...
Já não usa mais por aqui, ocê sabe, as coisas vão mudando...
Branquinho ele...!!! Ela velhinha...!!! As mãos...!!!
Uai, meninão! Peraí meninão! Deix’eu tirar os óculo,
senão dá reflexo, eu fico melhor sem ele...
Meninão, meninão!!!
Lucília Lopes Santos Ribeiro
No dizer de suas palavras, em face das imagens contempladas, presentes no livro, Reflexos ao calor do Vale, Lucília, com o seu modo de refratar, diferentemente de “Seu João Lino”, vai singularizando suas palavras no reconhecimento de uma presença que dramatiza, de modo intensamente vivo, o reflexo das imagens: renasce viva a pessoa de D. Ilídia, a dona dos brincos de ouro, ganha vida nova a figura de D. Anália, ou a figura de D. Alvina; ganha vida nova a sua figura de comerciante, a sua venda: tudo limpinho, brilhando. Não diz aqui Lucília, de outro jeito, bem diferente de “Seu João Lino”, com outro estilo refratado de dizer, do poder transfigurador da fotografia, atribuindo uma força maior de presença a tudo, a todos? “Tudo fica limpinho na fotografia, as cores, colorido.” Ao refratar os reflexos do espelho, a experiência viva de Lucília recria, com suas palavras, dramaticamente, o sentido das imagens e faz a pessoa de Lori ser aquele agente que além de fotógrafo, é artista, arteiro, Meninão, meninão !!!
Lori se encontra com Marlene Aparecida Ribeiro Rodrigues. Num primeiro instante ela se vê refletida no espelho.
Meu Deus, olha eu aqui...!!!
Num é que eu tô até apessoada...!!!
É o meu presente de aniversário!!!
Eu num sei nem agradecer...
Marlene Aparecida Ribeiro Rodrigues
E Marlene se vê comparativamente na prática do contraste que torna possível o movimento da imagem da refração cotidiana que abre espaço para a entrada, em cena, da refração da imagem nova. E, aí, o olhar refratado oferta a si a positividade de um presente: um novo sentido, um novo olhar, um novo aniversário. Diferente, por outro lado, é a experiência da singularidade da refração de Jacobina, personagem dominante no conto, O Espelho, de Machado de Assis. O jovem, alferes, sobrinho de D. Marcolina, conquistara no ambiente doméstico da casa dessa tia, a sacramentação da identidade adquirida de “senhor alferes”, e todos, assim, o reconheciam e, assim, o identificavam: constituíam todos, assim, a sua alma exterior. Desse modo, ao longo dos dias, cotidianamente, o espelho da alma exterior das palavras refletia e refratava essa imagem até que, a partir de certo tempo, na ausência, ou no vazio do espelho – as vozes da casa - tais palavras deixam de circular: a força do poder de construção da identidade de Jacobina, centrada na alteridade da alma exterior das diversas vozes do sítio de tia Marcolina, silencia. E o jovem, que já não ouve “senhor alferes”, as palavras da identidade consolidada pelo hábito, cai em angústia, e não se abre ao novo de novas marcas identitárias. Pelo contrário, assume ele, em face do espelho, com o tempo, a reprodução conservadora da identidade sacramentada pela sua alma exterior, na qualidade de voz dos outros: aqui a angústia que tomara corpo com a sua solidão, na ausência dos outros que circulam pela casa, é superada pela imagem do espelho quando essa imagem lhe restitui a identidade sedimentada como estabelecida. Diferente é a experiência refratada de Marlene: uma vez que os traços identitários habituais perdem seu sentido - caem no vazio - ganha relevo a singularidade de um novo traço, aberto à alegria de uma nova imagem: o sentido de um presente de aniversário.
Por outro lado, Marlene, no estudo comparativo que pratica, na contemplação das imagens fotografadas no livro, Reflexos ao calor do Vale, vai além da análise contrastiva que faz de si: retoma e refaz, com as palavras e com a imagem do espelho, as imagens verbais que reconstituem a identidade de D. Anália e, dramaticamente, entre as imagens do passado, em que é viva a presença de sua sogra, e as imagens do presente, em que já não se tem a sua pessoa, Marlene é capaz de refratar, com a sua memória, a marca de sua presença, que substitui a realidade de sua ausência: “Eu gostava muito dela... muito...!!! Ainda gosto, e muito!!!”. Com isso, Marlene se aproxima da experiência singular de Eva e Drummond ao lidarem, todos, de modo único, com a ausência que se faz presença, relativizando, assim, o sentido da perda.
Nossa... Meu Deus! É Anália, minha sogra...
Anália, Lori, era muito franca, o que ela tinha de falar,
ela não mandava recado, não deixava pra depois...
Mas era uma mulher muito boa, prestativa,
só ocê veno! Mulher muito boa!
Eu gostava muito dela... muito...!!!
Ainda gosto, e muito!!!
Meu Deus!!!
Marlene Aparecida Ribeiro Rodrigues
Dizendo de outro jeito, é possível dizer, finalmente, que a força do outro, ou da alteridade, é vital na constituição da identidade do ser humano, pois, sem esse outro, o filho do homem não é construído como humano: sem o olhar do espelho da mãe, por exemplo, ao dizer sentidos em palavras e imagens para o bebê, o ser humano, no filhote do homem, não nasce, ficaria reduzido ao sentido dos atributos da animalidade da natureza. Com isso, o escritor precisa ser pensado, como autor-criador, na constituição da personagem, ou do herói. Para tanto, o autor, tomando distância em relação a certa imagem que a personagem institui para si, procura vê-la, criando-a com o seu olhar próprio refletido no espelho. É o que acontece com Buriti, no Grande Sertão: Veredas (ROSA, 1967, p.235.). Aqui, o escritor vê Buriti com o querer de seu olhar, vendo aquilo que o vaqueiro Siruiz também vê: as águas azuladas do azul do céu refletidas no espelho das águas do olhar do herói. Mas, o escritor refrata essa imagem de Buriti, assumindo certa distância em relação ao herói: propõe, assim, uma nova imagem para a personagem, ou seja, Buriti passa a ter um excedente de visão, a imagem refratada de um mestre que deixaria de, apenas, ensinar para alguém que passa a ser, inovadoramente, um aprendiz. Esse é o trabalho criador do escritor: refratar o sentido habitual do espelho das imagens e das palavras do herói, recriando, assim, as imagens e palavras, em reflexo, no espelho do modo de ser rotineiro da personagem. (CAMPOS, 2006, p.308.) O escritor é, assim, aquela força de alteridade que constrói ou reconstrói o humano com a refração que confere vida nova, de modo singular, ao herói. (BAKHTIN, 2010, p.21-25).
Nossa, chega de ser até engraçado, Lori,
esse povo todo arreunido, parece festa,
gente demais, tem de um tudo:
Adelino tomando café...;
João Lino... num é bom nem falar;
[...]
Ilídia rezando...; olha aqui Anália,
que Deus a tenha em um bom lugar!!!
Mais uma outra rezando, uma outra
benzendo, olha o menino...!!!
As vacas, os vaqueiros, que sequidão...!!!
As mulher dançando... num falei,
parece até festa, tudo dançando...!!!
É cantiga de versos?
A outra caminhando na estrada,
carregando o pandeiro... parece festa!!!
Num é que é engraçado mesmo!!!
E as histórias todas que ocê já me contou...
eu vou conhecendo todo mundo,
um povão de Deus...!!!
Num é?!
Helena Siqueira Torres
É possível ver a força da alteridade de Helena Siqueira Torres. Em diálogo com Lori, contemplando as várias imagens do livro, Reflexos ao calor do Vale, D. Helena revela a sua admiração na constatação da força viva dos seres que vão constituindo aquela paisagem, até meio engraçada, de uma festa especial, muito variada, misturada, divertida: uma festa que não se reduz ao reflexo das imagens do espelho, mas aquela festa singular, refratada por certa visão que D. Helena tem: ela vai reconhecendo, relembrando as histórias contadas por Lori, vai conhecendo todo mundo, qualificado como povão de Deus. Na refração do olhar do espelho de seus olhos, ela concebe esse povão à imagem e semelhança do filho desse Deus, que nasce, na condição de homem, a cada ano como Cristo Jesus e que, em cômodo de sua casa, em São Gonçalo do Rio das Pedras, renasce, diariamente, com as lições da exposição catequética, disponível, de seu presépio, força de alteridade da voz de um cristianismo que refrata essa concepção de Deus – “festa de um povão de Deus “ - que ela produz, ou reproduz, de modo singular, como imagem de espelho educativo para o Vale, ou para além do Jequitinhonha.
Enfim, o documentário que Lori Figueiró produz, aqui, com O espelho das lembranças: memórias do Vale, com os reflexos e refrações do comentário que vou constituindo, aberto, evidentemente, à disponibilidade dos olhares de outros espelhos, não faz do Vale do Jequitinhonha um espaço abstrato, passível de ser visto, ou entrevisto, à luz de generalizações que lhe possibilitam apenas certa universalidade. Ainda que o espelho das imagens e palavras de Lori captem a objetividade do que é generalizável e do que é universal (vale lembrar que a sua condição de locutor o leva a produzir significações que ganham a condição de significados em reflexo no espelho) o que o mobiliza, fundamentalmente, é a singularidade do olhar refratado dos reflexos do Vale à luz da singularidade viva dos agentes que fazem, produzem, os espaços concretos do Jequitinhonha. Não é de se esquecer que os locutores e interlocutores de Lori produzem aquelas significações que se constituem como sentido, ou seja, que dão direção particular ou subjetiva aos significados: as refrações ou interpretações. Ou seja, tais agentes vão vendo os reflexos, vão deles tomando certa distância, e, nesse distanciamento, vão produzindo excedentes de visão, que abrem o Vale, refratadamente, à tensão de um diálogo - dialógico - tenso e aberto, em que as múltiplas vozes, na experiência concreta dos sentidos do que dizem e do que fazem com esse dizer, constituem a paisagem polifônica do plano do concreto , ou do refratado, por essas terras de Minas Gerais. É claro que, aqui, nos limites deste texto, entende-se o conjunto das lembranças como a articulação sistemática da linguagem a qual torna explícita uma face da memória com os seus significados e sentidos revelados. Uma outra face da memória, está presente nessa articulação sistemática da linguagem que, ao trazer à tona o conjunto das lembranças, deixa à margem do silêncio, aquilo que constitui a face mnemônica do esquecimento, em que o silêncio, força operatória do espelho abre os limites deste texto de comentário aos limites do inacabamento ad infinitum dos reflexos e refrações da semiótica da linguagem o que torna aberta a memória do Vale do Jequitinhonha.
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Ausência. In: ______. O corpo. 2.ed.Rio de Janeiro: Record, 1984. p.25.
ASSIS, Machado de. O espelho, esboço de uma nova teoria da alma humana. In: ______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Aguilar, 1974. p.345-352. (Obra completa, Volume II).
BAKHTIN, Mikhail. O discurso na poesia e o discurso no romance. In: ______. Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Fundação para o desenvolvimento da UNESP/Editora HUCITEC, 1990. p.85-106.
BAKHTIN, Mikhail. O excedente de visão. In: _______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 21-25.
CAMPOS, Edson Nascimento. A dimensão discursiva do texto de divulgação científica (D.C.). In: MENDES, Eliana Amarante de Mendonça; OLIVEIRA, Paulo Motta; BENN-IBLER, Veronika (Org.). O novo milênio: interfaces linguísticas e literárias. Belo Horizonte: FALE/UFMG/SEVFALE,2001. p.57-68.
CAMPOS, Edson Nascimento. O diálogo do espelho. O eixo e a roda. Belo Horizonte, 30, p.301-309, jan./jul. 2006.
LISPECTOR, Clarice. Os espelhos. In: ______. Para não esquecer. São Paulo: Siciliano, 1992. p.7-8.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1967. p.235.
ROSA, João Guimarães. O espelho. In: _______. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 437-442. (Ficção completa, Volume II).
WINNICOTT, D.W. A criatividade e suas origens. In:______. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975. p.95-120.
Edson Nascimento Campos
Nossa, chega de ser até engraçado, Lori,
esse povo todo arreunido, parece festa,
gente demais, tem de um tudo:
Adelino tomando café...;
João Lino... num é bom nem falar;
[...]
Ilídia rezando...; olha aqui Anália,
que Deus a tenha em um bom lugar!!!
Mais uma outra rezando, uma outra
benzendo, olha o menino...!!!
As vacas, os vaqueiros, que sequidão...!!!
As mulher dançando... num falei,
parece até festa, tudo dançando...!!!
É cantiga de versos?
A outra caminhando na estrada,
carregando o pandeiro... parece festa!!!
Num é que é engraçado mesmo!!!
E as histórias todas que ocê já me contou...
eu vou conhecendo todo mundo,
um povão de Deus...!!!
Num é?!
Helena Siqueira Torres
Manhã de domingo, barra do Pico do Itambé, Capivari.
Seu João Lino, João Rosa da Silva, depois de se ver
coando o café no monitor da minha câmara,
não se fazendo de rogado, exclama:
_ Diacho sô, quem tem tempo faz feitiço!!!
O senhor cum essa sua máquina, ave maria!!!
Isso é que é coisa de feiticero!!!
Olh'eu aqui, inteirim, inteirim...!!!
[...]
Num é qu'eu tô veno tudo como divera é!!!
Moço, qui disparramo, qui trem mais horroso de bom!!!
João Rosa da Silva
Fotografia II
_Num é de ver, Lori, o finado Oscar, Deus levou...
Ocê sabe, eu sei, e eu sei qu'ele num tá aqui no retrato mais eu,
mas ocê pode acreditar, eu vejo ele perfeitim,
esfumaçado, entre nuvens, perfeitim de tudo...!!!
É como as minhas vista com a idade me deixa enxergar.
Cada vez mais eu enxergo diferenciado, num é mais
como nos tempo de atrás...
Ele era um homem bom, tinha lá os seus defeitos,
todos nós temos, mas era um homem bom,
ele a vida toda foi o meu marido.
Um tiquim só de dias pra sessenta anos de casado,
ocê há de ver comigo, é uma vida, ocê num vê?!
De quando em vez, eu contemplava Dona Jesuina,
as mãos,”sem jeito”, folheando as imagens
do livro Reflexos ao calor do Vale,
no monitor da minha câmara.
Percebi nas paredes caiadas, recentemente,
a ausência do imaginário cristão catolicista:
as gravuras de Santa Luzia e seus semelhantes
foram arquivadas pela filha evangélica,
que não as via com bons olhos, nos fundos do guarda-roupa.
A luz filtrada pela cortina engomada me permitia admirar
o seu prazer e desconforto em manusear um objeto
a um só tempo inesperado e estranho, sedutor e agradável.
De soslaio, entreolhava-se sorrateiramente:
_ Arreparando bem, Lori, o mundo tem cores por dimais,
nem parece de verdade.
A luz, emanando dos seus olhos,
abraçava o seu universo de texturas
permanentes e imperceptíveis.
Que cores os seus olhos a permitiam ver?
Seriam as cores do prazer e da apreensão,
ou seriam cores indizíveis, fugidias, imaginárias?
_Inhantes d'eu morrer inda ei de ver muita coisa,
não sou exigente em demasia, mas dá uma vontade
de apreciar mais as coisas que vem do longe...
As palavras, estrondando em sua boca,
engendravam uma espécie de transformação interna,
estremecimentos...
Como captar em seus olhos
o aquarelável céu de cores humanas,
os interstícios de luzes e trevas,
o arredio chão que são vários,
o olhar detido num bem-te-vi
a reter o seu impulso de vôo, como?!
Como captar em seus olhos
o verbo luminoso da memória,
o gesto etéreo de se acariciar
e na cumplicidade de um sentimento festivo
o indescritível milagre de nossa existência
e sua fugacidade...
Como?!
Lori Figueiró