Nos acontecimentos da alegria e da boniteza

Nos acontecimentos da alegria e da boniteza

À sombra deste pequizeiro, imaginando um mundo menos feio, me transformei num passarinho e voei até onde minhas aspirações mais sutis conseguiram chegar. Numa estrada de terra vermelha, sertão profundo, o vento que soprava leve me levava de mansinho pra arte que pressente que algo de bom está por vir…
Andarilhando no divagar dos sonhos, não é que me encontrei com Paulo Freire ao lado de Lori?
Por mais inusitado, não me estranhou o encontro e segui os acompanhando nos meus voos curiosos.
Caminhantes insaciáveis por justiça social e beleza, dialogavam sobre visões comuns em seus olhares.
Preservando o cuidado nos gestos e nas falas, denunciavam e anunciavam a riqueza dos saberes populares:
– Lutar pela autonomia e emancipação desse povo é urgente!
E como à luz do sol quente a cor das flores não se cala, dois homens de corações valentes, confabulavam o ser gente.
Sem pretensões de julgar ou receitar o que as pessoas precisam, questionavam a si mesmos sobre o que os incomodava.
E nos desafios em permanecer esperançosos e confiantes nos acontecimentos da boniteza e da alegria, Vale à dentro, se aquietaram para absorver o que aquela Terra marcada os ensinava.
Esvaziados de todos os estigmas sociais e sem romantizarem a pobreza, expandiram suas percepções no silêncio do amadurecer e seguiram em busca de respostas, confiando na utopia que traziam dentro do peito.
Na sabedoria exposta pra quem lê o mundo antes da palavra, avistaram uma casa onde poderiam matar a sede.
Se apresentaram pedindo licença e foram recebidos por uma sábia senhora que lhes ofereceu água, café, biscoito e uma imensa rede de apoio sem dizer quase nada.
Encantados pelo esplendoroso acolhimento, refletiram sobre força e delicadeza, empatia e generosidade como também sobre luta, resistência, perspicácia, estratégia e espírito de comunidade.
Eu passarinho sonhador, assistindo a visita por uma fresta no telhado, resolvi reproduzir em forma de canto o que havia escutado: “Educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante” – foi o Mestre educador quem resumiu nessa sentença o que todo o ser humano em pleno exercício de consciência pode atuar no mundo com responsabilidade.
Lori com seu instrumento de captar e propagar os aprendizados que recebe, propôs à senhora que registrassem a luz natural que refletiam seus olhos e o seu sorriso.
Ela que de início se mostrava acanhada, depois da conversa tão aproximada, ergueu o queixo e aceitou ser fotografada para depois compor as páginas de um precioso livro.
Foi no clima de cerrado originário recebendo influências da caatinga fundante, com a escuta atenta à cultura viva, observando os causos e o pensamento expansivo vindo diretamente do chão que pisavam, sentindo a afetividade que permeava a identificação simples pelo que e contra o que conjecturavam, que confiei no trabalho amoroso como um ato de coragem. Pousado no galho de uma mangueira, vi um ensejo de missão cumprida e de maneira mágica, levantando poeira, Paulo Freire voltou a ser uma estrela tão brilhante quanto o sol – o sol da solidariedade.
O poeta da imagem que nunca esteve sozinho, tornou seguir seu caminho no contato delicado com o que há de mais belo numa gente que se renova.
Bem-vindo ao coração de cada casa, à serviço do mundo menos feio, cuidando muito bem do material que captura e propaga luzes inconfundíveis que nos alimentam a alma, com dedicação e criatividade.
De passarinho voltei ao meu corpo cheio de sonhos, refletindo sobre as raízes dos pequizeiros serem maiores do que as copas.
E, trazendo pro meu quintal o trabalho reflexivo, senti o chão do meu ser tão vasto como o céu, e o Vale do Jequitinhonha nunca mais foi sinônimo de miséria, carência, falta e vergonha. A sabedoria do meu povo sendo vista como seu maior patrimônio, tornou pra mim esse, mais um dos lugares propícios para preservarmos e garantirmos o seu bem viver.
E assim, num breve relato poético que estende os meus sentidos, entrego esse presente inacabado em palavras às pessoas, que para além delas e das exigências mercantis, podem sim ler e escrever.

Giselda Gil / Capivara MarGinal, Setembro de 2021

Domingas Luzia Borges, Minas Novas, outubro de 2021

Domingas Luzia Borges, Minas Novas, outubro de 2021