Rastros finais de uma era
Está escrito nos livros sagrados que a maior liberdade é ver. Ver não é uma qualidade do olho. É uma qualidade da alma. Ver é invisível. O fotógrafo enxerga com a lente, mas é a alma que traduz e vê definitivamente o por detrás. Quando a fotografia tem gente, a brincadeira fica mais bonita ainda porque o espelho – espiritual por natureza – oferece a todos sua aura mística.
Do lado de cá, há uma alma que retrata, espelhando a outra alma do lado de lá; a que aguardou pacientemente pelo dia em que esse espelho do reconhecimento a capturasse. Esse devir, esse reconhecimento, é tão mais poderoso quando os lados pertencem ao mesmo DNA (físico e metafísico). Ou seja, estão sob ação geográfica e cultural de uma mesma parte específica de gaia.
Aqui é esse caso potente. O fotógrafo e a fotografia pertecem ao mítico Vale do Jequitinhonha. Apenas esse ingrediente, por si só, já daria “pano para manga”. O fotógrafo porque se reconhece espelha na fotografia o reconhecimento. A fotografia viva se depara consigo mesma. É quase um evento mediúnico.
Quando seu Juscelino, um fotografado, uma fotografia, diz: Moço, o senhor num fica amargoso não, mas num faz retrato d'eu não, essas máquinas costuma arrancar de nós as intimidades, está se reconhecendo naquele fotógrafo, naquela fotografia. Só uma intimidade pode revelar outra intimidade. Ele parece nos dizer: Moço, não precisa me fotografar porque eu sou você. Ou ainda: Só você pode me fotografar porque você sou eu.
Esse “somos todos um” é tão velho quanto o homem sobre a face da terra. Contudo, numa terra que ainda preserva sua qualidade humana e divina, ele fica mais retumbante. O Vale do Jequitinhonha é assim. Retumbantemente humano e divino. Ainda. Lori Figueiró é assim. Sua fotografia é puro Dostoievski. Ferozmente equilibrada entre o divino e o humano, falando do nosso tão intrincado e misterioso universo a partir da simplicidade – quase incômoda – de sua aldeia.
“Estou fotografando o final de uma era”, confessa, com a serenidade dos que usufruem da vida vendo a história da humanidade passar pelas dobras do tempo.
Essas imagens só são possíveis porque nessa parte específica de gaia, o Vale do Jequitinhonha, ainda existem as raízes de uma era; os resquícios de um tempo: o fogão de lenha de dona Flora, a benzeção de dona Generina e a alegria centenária de dona Ilídia! Ainda existem o homem e Deus. A luz e a sombra.
A alma repousa entre a luz e a sombra. A alma refaz o caminho e conduz o homem à celestial morada perdida. A fotografia pode ser uma das grandes águas dessa travessia porque a liberdade de ver o invisível (oferecida pela miríade dos espelhos da câmera e da alma) ainda é o maior tesouro da encarnação.
Déa Trancoso
Lori Figueiró e o seu olhar de bem-querer para o Povo do Vale
O trabalho de Lori Figueiró traduz em imagens, fascinantes por sinal, a prosa-poética de João Guimarães Rosa e suas personagentes, como diria Paulo Rónai.
Palavras, sussurros, sons e ruídos roseanos, tornam-se algo de concreto, tangível, ao olhar perspicaz, sensível, sedutor e afetuoso desse poetógrafo que, com jeito simples, adentra as casas, também muito simples, das pessoas maravilhosas e encantadoras deste Vale de meu Deus.
É impressionante a velocidade com que Lori ganha a confiança desses homens e mulheres do sertão mineiro. Num breve dedo de prosa, um café que é servido, com quitandas ou um almoço cozido em fogão a lenha, e logo os flashes são presença íntima no prosear que já revela segredos, vontades, vaidades e afetos. Laços são construídos:
"Ê moço brabo que gosta de tirar retrato dessa véia feia", sorri Dona Ilídia.
" Feia nada, a senhora é Maravilhosa, com M maiúsculo", retruca o “moço brabo”, de coração gentil.
"Ô Lôro, que cê sumiu desse tanto?", reclama Mãe Gêra, “Mestra da Divina Luz”, em Jenipapo de Minas.
"Uai Dona Gêra! Ainda 'ontem' eu estava aqui".
"Pois pra mim faz é tempo, achei até que cê tinha mim isquicido..."
"Esquecer da senhora? Num pode não, pois pode?" "Lôro, Lôro!".
"Lori (som aberto no "o" e acento agudo no "i") que maravia você aqui!”
“Tudo bem com a senhora, Dona Zefa?”
“Vou levando. Catando cavaco aqui, catando cavaco ali. E a bailarina, num veio não?”...
Segue sem fim - ainda bem - uma visita que era para durar no máximo meia hora, “só pra dar um abraço”, como ele costuma dizer.
É nesse caminhar pelo Vale do Jequitinhonha, que Lori vai encontrando a força do sincretismo religioso, latente nos diversos grupos: congados, reisados, candombes, batuques e folias; a força ancestral de Geni do Congado, em Chapada do Norte, a luminosidade centenária de Dona Generina, em Araçuaí. Vai presenciando, também, o divino-maravilhoso-mistério dos benzedores e benzedeiras. "Seu" Bernardino, hoje, em outras paragens e "Seu" José Tiburtino, ali, nas terras de Ouro Fino, Coronel Murta; Dona Pretinha, em Berilo, e Dona Antoninha, em Francisco Badaró, e tantas outras que aliviam corpo e alma daqueles e daquelas que lhes procuram. Vai testemunhando, nas parteiras, as mãos rugosas, lindas, marcadas pelo Tempo, cansadas, mas ainda prontas para receber a Vida, se preciso for.
Em suas andanças, Lori tem o olhar focado no detalhe interior de lares e no mais íntimo das pessoas. Cotidiano Sagrado. Vilém Flusser e Giorgio Agamben têm autoridade e propriedade acadêmica e filosófica para discorrer sobre essa sacralização, mas, talvez, para Dona Maria Cheirosa, ícone profano do imaginário araçuaiense, o cotidiano do seu labor e de suas meninas tinha algo de Sagrado: o trabalho. Porque, sim, o meretrício era o seu ofício e das visitas recebidas tirava o seu sustento, portanto Sagrado. Já para Dona Helena Siqueira, em São Gonçalo do Rio das Pedras, o Sagrado se transmuta no seu cotidiano religioso, na mulher de fé que é, sempre pronta a receber, também, as suas visitas que buscam paz ao admirar seu presépio, para ela, ofício e sustento espiritual.
O trabalho de Lori, esse poeta da luz, desbrava e revela um Vale atávico, ressignifica sonhos, devolve a autoestima e promove a visibilidade de pessoas calorosas, incandescentes, que encontram no seu ofício, no seu cotidiano, algo de Sagrado. Que acreditam estar, assim, servindo e mais próximas de Deus. Dignidade é o que não lhes falta!
Recordo, "Seu" Bernardino, que tanto acompanhou Lori nessas andanças, confessar: “Eu não tenho gosto de aprender as coisas que não são boas, mas as coisas que Deus deixou, eu gosto de praticar”. E a tecelã berilense, Dona Joana Pinta, afirmar: “o que a gente precisa ter é honestidade, ser pobre não é defeito, eu mesmo padeço pra fazer meu trabalho, mas faço ele satisfeita”.
E, assim, ganhamos todos nós, porque esses saberes, sabores, fazeres, cantares e dançares, hoje, escasseados, estão aqui registrados. Homenagem a essa gente encantadora que, com o seu cheiro de terra e suor, exalando simplicidade, coragem e determinação, constrói a nossa história e reafirma a nossa identidade.
Obrigado, Lori Figueiró!
Diêgo Alves
Deus e a Mãe de Deus sabe o que faz
e a gente não sabe o que diz.
Generina Isidorio da Silva, Araçuaí, vale do Jequitinhonha
Eu tenho muita paciência com Deus,
com ele não discuto.
Até no dia de hoje
eu tenho muito prazer
com a minha vida
e tenho uma fé
que eu nunca vou deixar de ter.
O prazer na vida é coisa da maior alegria!
Bernardino Lopes de Caldas, Francisco Badaró, Vale do Jequitinhonha
Juscelino da Conceição Santos
Seu Juscelino de pronto sentenciou:
Moço, o senhor num fica amargoso não,
mas num faz retrato d'eu não, essas máquinas
costuma arrancar de nós as intimidades,
coisa qu'eu preservo e de fato conservo.
Eu, o senhor fique sabendo, eu num tenho
leitura não, só tenho manjamento, seu moço.
Penso muitas vezes isquisitado, sou assim mermo!
Um homem metido nesses matos desde qu'eu nasci,
uma vida toda vivendo no cerco dessas vargem,
terras de meu Deus.
Da minha mãe, moço, alembro pouco, deslembro até.
Discansou cedo, na flor fulorescente da idade.
Consta que no disgosto dos dias mais aperreados
adoçava a solidão com mel de garapa,
de quando em vez, licor de banana e pequi,
alvejando o enxoval nos lajedos do ribeirão,
ou assuntando o clarear dos céus nas noites de geadas.
O meu pai, que Deus também o tenha do lado dele,
era homem de gadaria, pastos conservado no arame,
homem forçoso, caridoso de bom
e aguentador de enormes trabalho,
bruto de forças e variáveis palavras.
Acostumando muito dispois de arreunir nós tudo,
nos aconselhando propagar:
Deus, meus filhos, depositou no mundo
um prato só, que nós tudo, cada qual com a sua colher
remexe tempero e quantidade no honesto de se prezar
como filho do Pai e da Mãe Imaculada,
honrando o que de fato merece de ser louvado,
achados de bem e de bom, em quantidades.
E eu, seu moço, no assentar dos ensinamentos dele
e merecedor de ser servo de Deus, no acostumado
vim me fazendo homem e pai de família,
louvando o que assim seja!
Lori Figueiró
Maria da Luz da Natividade Santos
Num faça isso, moço, num gasta a sua máquina comigo,
num carece não, põe sentido, num tem necessidade.
Ocê deve de saber, qu'eu num mereço...
Já a minha graça, pois eu conto:
Maria da Luz da Natividade Santos.
Como ocê num tá vendo, no meu rosto
os pé de pinto cresceram de dá gosto.
Disgosto! Já tive olhos de cetim, amendoados.
Chitãozinho rendado de bem querer!
Reconheço, num escondo não, num desenho
letra de alfabeto. Venho de princípios!
O meu pai, homem valente de trabalhador,
honesto nos trato, cumpridor de compromissos.
A minha mãe, bruta na delicadeza,
formosura de mulher prendada na lida e nos afazeres.
Orgulhosa de ser mãe de treze filhos, o mais velho
nasceu quando ela nem era ainda nem mulher de ser,
aprendeu com meu pai.
O que não se sucedeu comigo, moço,
o destino quando tem de ser, num deixa de ser,
distante das alegrias do corpo, amarguei desilusões
a labutar quer seja dia, quer seja noite
na tarefa obrigatória de criar os filhos
não gerados no ventre qu'eu carrego comigo
desde qu'eu vim ao mundo pelas mãos caridosas
e abençoadas da minha madrinha, dona Dos'Anjinhos.
O tempo vivido, com o tempo aprendemos, é tempo gasto!
E eu aqui, moço, carregando a inteira viuvez da família,
num resta mais ninguém, migraram tudo
pras terras de meu Deus, pai misericordioso,
piedoso no acolhimento.
Sozinha, ele vem me deixando de lado,
parece não me querer com eles.
As suas intenções, nem tento adivinhar,
não mereço conhecer os seus desejos,
vou me contentando em ser sua serva,
a filha de voz solitária, nascida e ungida
Maria de todos os Santos!
Lori Figueiró