A terceira margem do tempo

“Adri Aleixo não faz aqui nenhuma tentativa de subordinar a poesia à imagem, antes a poesia dimensiona a imagem, registrada com notável competência por Lori Figueiró, mas requalificada pela lente da poeta, filtro apurado de uma margem invisível”

Quando Rosa, nas veredas do seu Grande Sertão, falou que o rio tem três margens (Primeiras Estórias, 1962) desconstruiu-se o Tempo. A história (prefiro assim, com hi) tem sim, e Milton Nascimento o confirmou com seu clube, uma margem da palavra, oculta, que só a alcança o iniciado na Literatura, oral que ela seja, não falo dos eruditos.

Adri Aleixo surpreende com seu recém-lançado Das Muitas Formas de Dizer o Tempo, Ed. Ramalhete, 2019, trazendo a essência das profundas geraes em palavras que engendra sobre a imagética do não menos brilhante Lori Figueiró, fotógrafo.

Nilsa Vieira Jardim, Araçuaí, fevereiro de 2016

A trajetória da poeta vem num crescendo desde publicação de seu livro de estreia,  Des.caminhos, Patuá, 2014, seguido de participações em antologias pelo país afora e de Pés, segundo volume de poemas, também pela Editora Patuá. Professora de literatura em Belo Horizonte, cidade pródiga em poetas mulheres aguerridas, daquelas que não aceitam o epíteto de poetisa, talentos do calibre de Adriane Garcia, Ana Elisa Ribeiro, Simone Teodoro, Norma de Souza Lopes e tantas mais, Adri, que é do interior de Minas, traduz com competência a poesia destas minas por tantos séculos saqueadas a lombo de burro, desviadas suas riquezas pro mar ao Norte, Salvador, ou Sul, Paraty, Estrada Real.

É nas Geraes onde se consolidou o germe da cultura do Brasil profundo, que nasce literariamente no Rio com Machado e chega a Rosa, que nasce musicalmente com Villa Lobos e Tom, mas resulta no Clube da Esquina.

Como as canções, que têm suas letras criadas a partir do mote melódico, a fotos, ao que parece, aqui ensejam os poemas do livro. Encartado à fotografia de uma senhora idosa da pele toda sulcada vemos este poema tão sintético e absoluto:

ESTIAGEM

Ela traz um rio no corpo

e o rio dentro dela

só quer ser mais fundo

Idêntico processo, pra ficarmos em dois exemplos (faculto ao leitor a descoberta das demais epifanias do livro), a partir da foto de um daqueles oratórios barrocos dos lares: mineiros

ORATÓRIO

Estes pós

Estes santos

Foram netos, mães, meninas

Quando morre um anjo

Deixam-no assim suspenso

Entre preces e fitas

 

_ Todos os dias este oratório me ensina a partir

Muito se  tem falado em poesia visual, e mesmo as experiências dos pós-modernistas todas convergem a um direcionamento da poesia contemporânea agregado às mídias que a cada dia surgem. As próprias redes sociais constituem-se num locus poético bastante interessante, que ao gênero agregou uma popularidade jamais alcançada.

Adri Aleixo não faz aqui nenhuma tentativa de subordinar a poesia à imagem, antes a poesia dimensiona a imagem, registrada com notável competência por Lori Figueiró, mas requalificada pela lente da poeta, filtro apurado de uma margem invisível. Recomendo fortemente.

Manoel Herzog, Revista Fórum, 26 de julho de 2019

São Gonçalo do Rio das Pedras, Serro, abril de 2016