Que tempo é esse...
Que tempo é esse, tão familiar e remoto? Que tempo é esse que enfeitiça a poesia de Adri
Aleixo e quer se fazer sentir, ritualisticamente, em requadros domésticos de poucos (mas sagrados) elementos? Esse existir de uma casa, que da porta para fora se estende no corpo da terra, e da porta para dentro continua num corpo de mulher tão crestado e sábio quanto o chão. O sagrado que aqui se traduz por necessário.
Mãe é uma forma de dizer o tempo, casa, câmara, arca, ela que guarda, zela, tece cuidados, reza, consola. Ela que vigia o fogo, molda o barro, acarinha a pedra. Ela que, a cada instante, a cada corpo seu debruçado sobre as coisas, compõe uma pintura de interior em gestos vivos. Gestos poucos, simples, litúrgicos, como são poucas as palavras, igualmente litúrgicas e necessárias, dessa poesia. E o calor da presença humana nas fotografias de Lori Figueiró, num sertão que existe num infinitamente agora transversal aos séculos: tão familiar e remoto.
Eis que certa duração corpórea nos dias ainda não foi extinta. Ainda há dessas casas, dessas mães, dessas palavras poucas que dizem de um calendário íntimo, pontuado por rosários, datas santas, banhos, gamelas, longas esperas e tentações de partida. Ainda há saudades dessas enraizadas no longe de uma terra natal, no interior de úteros de adobe, que cumprem seu ciclo e se releem em poemas.
A poesia, também no seu tempo, cuida de amadurecer um afeto pelo que é simples, gloriosamente simples, e sábio de coração. Depois de tanto vivido, que tempo é esse, de estudado amor? Que tempo é esse, nas mãos de Adri? É quando as palavras veem melhor.
Marianna Ianelli, escritora
Das muitas formas de dizer o tempo
Já na epígrafe nos sentimos ciceroneados. E quem melhor do que ele, Guimarães Rosa, para nos levar ao sertão dos versos de Adri Aleixo e das fotografias de Lori Figueiró? Na entrada o aviso: “Que a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo as coisas bonitas ou boas, que aconteciam.”
Das muitas formas de dizer o tempo é uma dessas coisas boas. Pare, dispa-se do barulho infernal, das multidões da virtualidade sem fim, do trânsito incessante, do vozerio. Entre, olhe e veja: há uma mulher varrendo o chão num gesto ancestral – a cena é real e metafórica. Ao leitor, que sabe que ela varre folhas e ajunta o tempo, resta sentir e imaginar a cor e a textura das folhas, na tessitura do texto, a forma da árvore; os objetos somente sugeridos, pois Adri Aleixo apenas entrega o necessário.
A oportunidade é rara, a beleza está disposta no cotidiano mais simples revelado, assim como as palavras que alertam o visitante: “tabatinga”. O léxico do sertão se incrusta na paisagem. Dentro das casas, o casal velho reafirma o amor, a mulher rota reparte o alimento para os filhos, o oratório ensina sobre as perdas, a cozinha ganha um novo objeto, a xícara lascada denota a falha, o santinho recorda a experiência amorosa, a pedra da sorte é amparada pelas mãos da fé.
Enquanto o leitor se embrenha no dia-a-dia que parece ordinário, a vida, esse sempre complexo, mostra suas vicissitudes – a poeta é da roça e mora na cidade, seu banzo confesso pelas gamelas de farinha. Porém, a sabedoria sertaneja não permite o engano: tudo é ciclo.
A chuva é esperada como milagre de reza. Dentro e fora, a estiagem se confunde, trazendo as marcas de um rio.A morte é presença certa e convivida, o sertão sabe das coisas. Em versos definitivos, Adri Aleixo denuncia a sombra que espreita os viventes: “o tempo é quem faz tocaia/ e sorrateiro avisa/A história é a mesma, embora já seja outra”.
Não bastasse a poesia abundante, com um poder enorme de tocar, a fotografia de Lori Figueiró igualmente emociona. Seu trabalho não completa, pois não há nada faltando: soma, eleva. De sua sensibilidade, aspectos singulares da vida sertaneja e da origem rural aparecem em imagens. É registro, mas é também saudade.
A visita termina, mas fica inesquecível. Não devíamos ignorar “as plebeinhas flores, quando a gente tanto por elas passa”. Em tempos de penúria humanista, nosso cicerone sempre dirá que “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”
Adriane Garcia, poeta
Fotografias e Poesias do livro Das muitas formas de dizer o tempo
Sopé
No vale
o chão
pinta as portas
Adri Aleixo
Reza
Há uma senhora linda
com quem divido a sorte dos dias
cantamos aos rios às estrelas
são rezas à senhora do Rosário
ponho nomes em contas pequenas
Catopês espalham pelo Vale
Adri Aleixo
Ladainha para um dia qualquer
Com alguma sorte
ela pode dividir o dia em dois
manhã e noite
como quem divide o chuchu
e reparte entre os filhos
suas bocas rotas
famintas
o dia
a casa
essa membrana invisível
medrando afora vontades
o dia
que ainda sendo noite é dia
e não termina até que se faça sopa
até que se tenha água
esquente o fogão
a serpentina
os muitos banhos
os quartos
cobertas
velas
rezas
dorme com Deus, mãe!
Adri Aleixo
Oratório
Este pó
estes santos
foram netos, mães, meninas
quando morre um anjo
deixam-no assim suspenso
entre preces e fitas
- Todos os dias esse oratório me ensina a partir
Adri Aleixo
As latas na cozinha
Agora que virou o ano
a cozinha tem alguma ou outra novidade
a folhinha do Cristo na parede
o anúario do papa
e as latas de pêssego e goiabada
que embora tenham ganhado alças
pousam na janela como pássaros
Adri Aleixo
Cristaleira
entre as duas taças
a xícara lascada
respira
Adri Aleixo
Estante
Entre tantos viventes da casa
descansa
no santinho da estante
Minha única experiência de amor
Adri Aleixo
O recado do morro
O luar estava muito branco
um pedacinho de mata aparecia longe
dava para separar as flores azuis dos pau-terra
a vista era cansada
tinha lido muita coisa nessa vida
e nessa hora atalhava
ouvia tudo
o recado
se chove se faz sol
o morro fala
a cerração confirma
o gado espera
o tempo é quem faz tocaia
e sorrateiro avisa
A história é a mesma, embora já seja outra
Adri Aleixo
Sequência
A fé em buscar a pedra
a mais cava, arredondada
moldá-la à concha da mão
os muitos carinhos todos
em beijá-la com dedos
quase musicais
afora o sol batendo nelas
Há um fio, filigrana
ela a vê: propensa e grave
e lhe traz à vida
Adri Aleixo
Ampulheta
A folha pendeu-se do galho
e verde ainda agarrou-se ao telhado
não demora setembro, até que ela caia
marrom e devagar
neste dia aprendi do tempo:
a cor
a queda
o silêncio
Adri Aleixo
Jó
As poucas árvores
que não foram arrancadas
fazem sombra às pessoas
que vivem por insistência
minha mãe me põe a benção
orgulhosa de eu vir pra cá
voltasse eu no tempo
que só se gasta
ficaria na roça
gamelas enormes
peneirando farinha
amparando minhas mãos às suas
arrastando-nos ao infinito
Adri Aleixo
Mulher da roca
Se o sol batesse nela
a essa hora do dia
teríamos a imagem de um jarro
as mãos em cálice amparando
o som os fios
olhando mais de perto, sentiríamos vivos
a casa, os móveis
as folhas de carvalho
onde vivem a neta, os filhos
falaríamos de coisas complicadas e outras elementares
de certo, eu acharia tudo doído
mas ela diria: é o ciclo
Adri Aleixo
Itinerário
Ela grita para o vento
vem,
há uma árvore que plantei antes do
tempo
o umbuzeiro, esta lacuna
um trançar de pés, essa ternura
aqui todo lugar é sempre
todo som é canto e sol
mas pensa os caminhos do coração
porque a vida é escolha
e há entre arrulhos e signos
este itinerário de chão
Adri Aleixo
Estiagem
Ela traz um rio no corpo
e o rio dentro dela
só quer ser mais fundo
Adri Aleixo
Artesã
Miguilim gostava dela
queria estar perto, vê-la compor as bonecas
respirando a flor de buriti
hálito de terra e fibra
Ela compunha as saias das bonequinhas
uma a uma
desenhava os rostinhos com cheiro de chuva colhida com as mãos
e pintava os olhos pequenos
olhos de ver pra dentro
o céu dentro do morro
Adri Aleixo
O campo de cebolinhas
Pensou no rastro quente da última coivara
era dia, era quente, mas era úmido
pegou no caritó a imagem santa e foi correr
os campos
era dia dezenove
e antes de sentir o molhado da chuva ou
o tamborilar da primeira telha
seus pés agradeciam
os campos se enchiam
Adri Aleixo
Cumeeira
Para cessar o peso do dia
poderás ir ao telhado
lá, há um precipitar de chuva e pulo
uma vista para o descampado
é lá onde secam as palavras
e coragem é uma espécie de ruindade
lá, duas águas se encontram
Adri Aleixo
Retorno
Ontem foi a última vez
que seus olhos viram
isso que chamamos de vida
ela sorria a pele cheirando a terra
o sol se demorando nela
a voz cheia de horizontes anunciava:
- a vida te prepara pra partir
Adri Aleixo
Retorno
este friso
entre
água e rio
morro, casa, curva
Este chão sempre de mim partindo
Adri Aleixo
Das muitas formas de dizer o tempo
A vida muitas vezes era uma janela sem nenhuma poesia
não eram muitos os que se sentavam na soleira da porta
o tempo, embora parecesse muito, era privilégio de algumas plantas,
estas, sábias de sua necessidade cresciam rápido
prestativas para lhes oferecer algo
era preciso dar conta da vida, assoprar a fuligem
antes que ela se impregnasse na alma
é que às vezes as coisas boas são temporãs
e aparecem sempre roídas pelas horas
de todo modo espreitavam a lua e o canto da coruja
era o tempo quem dava lição de plantar
de nascer e de morrer
mas sabiam, no inteiro de seus seres
que o Vale é o lugar de quem vive o sol inteiro
Adri Aleixo