Uma questão preliminar veio-me à tona quando me pus a pensar sobre o título do livro que Lori Figueiró produz para tratar do trabalho de Valdete Gomes Fernandes Silva: Acender do barro. O que se acende do barro? Parece-me, como hipótese de leitura, que se tem o acesso a dois planos do trabalho de Valdete: o plano do processo de produção e o plano do produto entranhado em tal processo e, de tal forma, que não conseguimos separar um plano de outro plano a menos que o façamos por efeito de análise.
Valdete Gomes Fernandes Silva, Cachoeira do Fanado, Minas Novas, março de 2017
Vejamos o que Manoel de Barros nos diz lá, no poema, O cisco, no Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo.
O cisco
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos
importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de
terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase
sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de
passarinhos.
Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos,
asas de mosca
Para a feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
A partir desse poema, é possível dizer que Valdete se comporta como quem pratica poiesis, ou seja, ela se comporta como o poeta, aquele que faz, aquele que cria um produto a partir de trabalho manual. Isto é, como poeta ela contempla os restos. Ou seja, ela contempla algo que faz parte do que está distante, esquecido, parcial ou integralmente. E é o que me parece quando ela mesma diz:
“É como às vezes eu falo, Lori,
di tudo qui eu mais gosto de fazer
é as boneca,
no fundo a gente tem uma criança
dentro da gente.”
Ao dizer o que diz, ela se comporta como pessoa que tem uma certa familiaridade com a interioridade, lugar onde moram os restos, ou seja, as forças produtivas que vêm da infância e que habitam o processo de trabalho do adulto que ainda se sente e precisa ser criança. Ao dizer o que diz, não estaria Valdete contemplando a presença do poeta que habita a sua força de artesã? Não estaria Valdete a vasculhar a intimidade de seu processo de trabalho? Não estaria ela cumprindo as exigências que Lacan propõe como tarefa para os poetas?
“Lugarzinho mais difícil de enxergar é dentro de nós mesmo!”
Parece-me que aqui está a chave da resposta à pergunta a que me referi de início. E eis a resposta, suponho: o que Acende do barro não é apenas o conjunto dos produtos, das bonecas que a artesã nos mostra através da bela exposição fotográfica que Lori monta em forma de livro. É também a referência de seu processo artesanal: a do trabalho manual de quem, ludicamente, como criança imaginária, continua a brincar com as suas bonecas, no exercício de abraçar a beleza do humano. É isso o que faz A beleza dos restos, título do livro de Elizabeth Gontijo, autora do poema que se segue:
Valdete Gomes Fernandes Silva, Cachoeira do Fanado, Minas Novas, março de 2017
Restos
O sono de um homem
deixa vestígios
na mansidão do travesseiro.
Cinzas sobre a fronha
Denunciam
aquilo que ele não pôde sonhar.
O que Acende do barro é, pois, a chama viva da beleza dos restos na obra de Valdete: a beleza dos restos, ou dos vestígios, de infância nas bonecas que ela poeticamente faz como produto e como processo, pois todo produto traz no seu corpo as marcas do processo que o institui.
Edson Nascimento Campos, 09 de junho de 2020
Referências bibliográficas.
BARROS, Manoel de. O cisco. Tratado geral das grandezas do ínfimo. In: ______Poesia completa. São Paulo: Leya,2010. p.400-401.
CAMPOS, Edson Nascimento. A relação entre o processo e o produto na escrita do texto. Educação em Revista: Revista da Faculdade de Educação, Belo Horizonte, v.3, p.51-52, jun.1986.
FIGUEIRÓ, Lori. Acender do Barro. Belo Horizonte: Ramalhete , 2018.
GONTIJO, Elizabeth. Restos. In: ______ A beleza dos restos. Belo Horizonte: &JM, 2011.